Publicado por Patrícia Caneira
05.04.20
Ai Afonso Reis Cabral, foi amor à primeira leitura. O nome já prometia, andava por aí um rumor de que este era um dos melhores escritores da atualidade. Bastou-me o "Pão de Açúcar" para confirmar que nem todos os rumores são falsos. Em 2006 um brutal assassinato corria o país de Norte a Sul. Os noticiários referiam que um grupo de miúdos, alguns com apenas 12 anos, tinham morto brutalmente Gisberta, uma mulher transsexual de 45 anos.
O tema gerou reportagens, crónicas e artigos de opinião. Em 2018, gerou também "Pão de Açúcar" que valeu a Afonso Reis Cabral o Prémio José Saramago. Há muita coisa nesta obra que nos prende, não só a escrita deliciosa do autor como a forma crua com que os personagens são relatados. Por momentos é fácil esquecer que isto que lemos não é ficção, mas a dura realidade.
É desumano pensar que um grupo de crianças pode matar uma pessoa, mas é extremamente cativante perceber quem eram estas crianças, como cresceram, o que lhes enche as medidas, o que aspiram ser, como encaram as relações humanas. É aqui que entra Afonso Reis Cabral, que se afasta do crime e de Gisberta para se aproximar das vidas destes miúdos, tornando esta história diferente de tudo o que havia ocupado as páginas dos jornais.
A história é contada a partir das confissões de Rafa, um dos envolvidos, que descobriu Gisberta num edifício abandonado e viveu uns quantos dias entre a repulsa e a atração que sentia por aquela pessoa, que gostava dele, precisava dos cuidados dele, o olhava como gente e até lhe deixava bilhetes que elogiavam a sua bicicleta. Rafa alimentou Gisberta, ajudou-a a tornar a sua casa mais habitável e até a levava a ver a vista, mesmo quando a doença já havia tomado conta do seu corpo.
Mas Rafa também sabia que algo só se tornava real quando era partilhado, enquanto fosse um segredo só seu, Gisberta não existia. E foi assim que, ao contar aos amigos a existência dela, o final da história se tornou negro como a noite.
Conheci-o num dia em que granito, asfalto e cimento assentavam na cidade como a primeira neve. Só no Porto tanto feio e tanto betão se parecem com uma coisa bonita, o que vale de pouco, já que o encanto acaba quando bate o sol. Pelo menos o sol não bate assim tantas vezes.
Afonso Reis Cabral consultou a decisão do Tribunal de Família e Menores do Porto, conversou com testemunhas e percorreu as ruas que aqueles miúdos percorriam todos os dias, desde a Ofícina ao edifício do Pão de Açúcar. Esta não é uma história que vai surpreender ninguém, até porque é raro encontrar quem não tenha ouvido falar de Gisberta. O que torna esta obra numa das melhores que já li é veracidade da escrita, o tom certo com que se passa dos tormentos de miúdos que viviam à sua sorte, ao carinho que sentiam por uma mulher transexual, culminando no ato de espancar e atirar o corpo a um poço.
A magia de um bom livro está na necessidade de o devorar todo de uma vez. Se não sabem o que ler por estes dias de quarentena, esta é uma aposta certeira, até porque "Pão de Açúcar" tem dois ingredientes que tornam qualquer receita irresistível: pessoas e circunstâncias.
Pão de Açúcar
Afonso Reis Cabral
264 páginas
★★★★☆